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Dança com os deuses

Outro dia eu fiz um crossover entre C. S. Lewis e Raul Seixas no Instagram, então Arnaldo Antunes vai soar fichinha pra vocês. Bem, vamos lá. Se por um lado “Carpinteiro do universo”, do roqueiro baiano, me leva a refletir na natureza egoísta do nosso (suposto) altruísmo, “Alegria”, do ex-titã, me faz pensar na natureza egoísta do nosso sofrimento. Diz a letra: Eu vou te dar alegria Eu vou parar de chorar Eu vou raiar um novo dia Eu vou sair do fundo do mar Eu vou sair da beira do abismo E dançar, e dançar, e dançar A tristeza é uma forma de egoísmo Eu vou te dar, eu vou te dar, eu vou... É precisamente esse o problema de Orual, personagem de C. S. Lewis em Até que tenhamos rostos . Em dado momento da narrativa, ela empreende uma longa jornada até o monte onde sua irmã Psique, por quem nutria um amor maternal mas idólatra, havia sido levada para o sacrifício. Quando ela e Bardia, o fiel soldado, chegam em um determinado ponto, dão com uma paisagem tão exuberante que deixa Orual atônita

Os filhos de Arielle

Já escrevi alhures sobre por que Gilead , de Marilynne Robinson, é um dos livros da minha vida. Um episódio hoje me fez voltar a ele. Era madrugada, e eu estava na biblioteca trabalhando no computador, quando de repente minha esposa entra chorando. Dei um pulo da cadeira e perguntei o que tinha acontecido. “Não consigo dormir pensando nos filhos de Arielle”, responde. Desliguei o computador e, enquanto saíamos da biblioteca em direção ao nosso quarto, peguei Gilead  na estante. Ao chegar na cama, após relembrá-la do que trata o livro – uma longa carta de um pastor já velho para o seu filhinho de oito anos –, escolho dois dos meus trechos favoritos.  O primeiro, uma reflexão do personagem, Rev. John Ames, sobre a passagem bíblica de Agar e Ismael: “Essa história me ocorreu enquanto eu estava orando hoje de manhã, e senti nela uma grande segurança. O que se diz, nessa passagem, é que o pai de uma criança não é o único que cuida dela, que protege a sua mãe. Diz inclusive que, mesmo que um

Ervilhas e juás

— Mas olha só! Basta apenas um tico! O mundo, coitado, sem saber estava prestes a desabar com a nova descoberta do Fernandinho. Tantos anos colocando mais pasta que o necessário na escova de dentes não podiam passar incólumes. Os fabricantes tinham de pagar! Sua primeira e óbvia providência foi consultar o pai, que trabalhava na repartição do Inmetro responsável por medir a altura dos pés dos móveis (sofás, armários, fogões etc.) para garantir a passagem do mop embaixo deles. Doutor Fernando, como era conhecido na praça, já havia multado uma dezena de marcas, com direito, inclusive, a reportagem no Fantástico. Diziam as más línguas que ele era mancomunado com determinadas marcas e com a própria produção do programa, mas isso nunca foi provado. — Claro que esse absurdo não pode passar batido, Juninho! Sua hora de mostrar serviço é agora. Inclusive, se você tivesse me contado antes, eu teria economizado meio grama de pasta hoje de manhã. Imagine o peso disso no orçamento de milhões de br

Adjunto epistolar

Dois leões de fome e juba chegaram de supetão à casa da avó. A mesa não tinha essa fartura toda. Era-lhes, porém, suficiente. Vó Isabel repara nos meninos famintos e cabeludos e selvagens. Compadece-se. Vai até o quarto. Volta, então, com um bilhete metido num envelope feito ali mesmo, às pressas. Dá-o na mão do mais velho. “Entregue à sua mãe. Não abra”, recomendou. Os meninos se despedem e saem. Já em casa, o mais velho estende o envelope à mãe.  “Vó mandou”, diz. A mãe abre. Dentro, uma cédula de 5 reais e um bilhete: “PA CORTA U CABELU DUS MININU” O mais velho, que na ocasião engoliu o choro, mais tarde descobriu, já mais sabidinho na gramática da vida, que esteve diante de um adjunto epistolar (essa nova nomenclatura gramatical!), do qual aquela cédula era apenas a sua encarnação: o amor. O incomparável amor de vó.

Dois cavalos

Um amigo, a quem recomendei Peixe grande e suas histórias maravilhosas  e saiu um tanto frustrado do filme, dizendo que esse negócio da fantasia como substituta da realidade é perigoso, que precisamos ter cuidado com isso, piriri, pororó, contou-me, vejam vocês, um causo que não faz outra coisa senão confirmar a premissa mesma do longa. Ele e sua esposa passavam a lua de mel num desses cenários paradisíacos do litoral sul de Pernambuco. Ali pela campina próxima a onde estavam hospedados pastava um cavalo cuja brancura dava o contraste perfeito com o azul do mar. Os pombinhos ficaram a tal ponto encantados com a magnificência do bicho que, ao voltarem para o Rio de Janeiro, recomendaram a mesma pousada a um casal amigo somente por causa do cavalo. Mas tal não foi a frustração dele quando esse casal de amigos retornou com a foto do pretenso manga-larga do meu amigo. Ele não passava de um pangaré feridento. Meu amigo ficou confuso. Não era possível tratar-se do mesmo cavalo. Podia jurar q

Réquiem para um coqueiro

Em meados da década de 90, quando o telefone celular ainda era um artigo de luxo para a esmagadora maioria dos brasileiros, tínhamos quatro coqueiros no quintal de casa. Periodicamente vinha um rapaz para limpá-los e comprar os nossos cocos. Ele vendia coco na praia. Não lembro bem agora com que frequência ele vinha, apenas que quando aparecia era porque já estava caindo coco, perigando mandar gente ao encontro de Deus. Também não tínhamos telefone fixo. Não obstante, religiosamente ele estava lá, o galego banguelo, no período dos cocos em queda, trepando no coqueiro com espantosa agilidade e nos livrando de cocadas no cocuruto. Era uma festa. O quintal se enchia de palha de coqueiro e outros bregueços. Eu e meu irmão levávamos a palha para o lixão do bairro — não sem antes, evidentemente, separar as melhores para fazer pipa. Depois tomávamos água de coco, pois o galego sempre deixava uns pra gente. Alguns anos mais tarde meu pai comprou o seu primeiro celular. E o galego do coco, será

Partiu

Para Nolan*. Feliz Dia do Amigo. Dias atrás um amigo me perguntou se Jayber Crow , de Wendell Berry, trata sobre vocação. Respondi que, embora não se resuma a esse tema, o romance o aborda, sim. Afinal, o protagonista tentou um pouco de tudo na vida (inclusive ser pastor, vejam só), mas sua vocação mesmo era ser barbeiro, um simples barbeiro. No entanto, é a partir de sua barbearia que ele enxerga o mundo. Ou por outra: Jayber Crow  nada mais é que o mundo contido numa barbearia.  Eu mal sabia que, por trás da pergunta do amigo, jazia uma pequena crise vocacional. Quando aquilo que fazemos por necessidade enche de comida a nossa mesa mas não de alegria o nosso coração, é natural que lutemos com Deus por qual lugar ele nos quer neste mundo. Se após cada ato criativo ele mesmo avaliava tudo como “muito bom”, por que nós, os seus filhos, não podemos fruir de sensação semelhante?  Curiosamente, esse mesmo amigo mal sabia que este era um assunto no qual eu vinha matutando bastante nos últim