Os filhos de Arielle

Já escrevi alhures sobre por que Gilead, de Marilynne Robinson, é um dos livros da minha vida. Um episódio hoje me fez voltar a ele.

Era madrugada, e eu estava na biblioteca trabalhando no computador, quando de repente minha esposa entra chorando. Dei um pulo da cadeira e perguntei o que tinha acontecido. “Não consigo dormir pensando nos filhos de Arielle”, responde. Desliguei o computador e, enquanto saíamos da biblioteca em direção ao nosso quarto, peguei Gilead na estante. Ao chegar na cama, após relembrá-la do que trata o livro – uma longa carta de um pastor já velho para o seu filhinho de oito anos –, escolho dois dos meus trechos favoritos. 

O primeiro, uma reflexão do personagem, Rev. John Ames, sobre a passagem bíblica de Agar e Ismael:

“Essa história me ocorreu enquanto eu estava orando hoje de manhã, e senti nela uma grande segurança. O que se diz, nessa passagem, é que o pai de uma criança não é o único que cuida dela, que protege a sua mãe. Diz inclusive que, mesmo que uma mãe não consiga encontrar um jeito de sustentá-la, a criança será sustentada. Sob esse prisma, é uma história muito reconfortante. A vida é assim: mandamos os nossos filhos para o deserto. Alguns deles no próprio dia em que nascem, ao que tudo indica, por toda a ajuda que podemos lhes dar. Outros parecem ser uma espécie de desertos para si mesmos. Mas também deve haver anjos por aí, e um poço de água. Mesmo naquele deserto, na morada dos chacais, o Senhor está presente. Preciso me lembrar sempre disso.” 

O outro, talvez o meu favorito do livro, sobre a quem pertencem a paternidade e satisfação últimas:

“Por que será que a idéia de você velho me agrada tanto? A primeira pontada de artrite no seu joelho é algo que imagino com a maior ternura, exatamente como me senti quando você veio me mostrar o seu primeiro dente que caiu. Seja aplicado nas suas orações, meu velho. Espero que você conheça muito mais lugares do mundo do que eu, que nunca andei circulando por aí — por minha própria culpa. E espero que leia alguns dos meus livros. E que Deus abençoe os seus olhos, os seus ouvidos, e, é claro, o seu coração. Adoraria poder ajudá-lo a carregar o fardo de muitos anos. Mas o Senhor terá essa satisfação paterna.”

Tenho certeza de que Arielle, por quem vínhamos orando semanalmente na igreja, gostaria de poder carregar o fardo de muitos anos de seus filhos, vê-los crescer como homens e mulheres de Deus, ninar os filhos deles cantando-lhes salmos ou lendo-lhes Tolkien, um de seus autores favoritos. No entanto ela foi chamada para deixar o Condado rumo aos Portos Cinzentos, o descanso eterno dos santos. Seu marido e filhos, que ora ficam, hão de continuar o seu legado de fé e esperança, na certeza de que o mesmo Senhor que se apiedou até mesmo do filho bastardo de Abraão há de preservá-los no Condado até o dia em que hão de reencontrá-la sem dor ou lágrimas, aos pés daquele que sarou todas as nossas enfermidades.

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