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Mostrando postagens de janeiro, 2023

Espelhos na parede

Minha clientela, você poderia descrever como um recurso não-renovável: não ganhei muitos clientes novos, e os antigos foram minguando lentamente. Mas os que ficaram permaneceram fiéis. A vinda deles é um ato de fé ainda maior porque, nesta casa do rio, não tem espelhos nas paredes: aqui, sou o único juiz do meu trabalho; quando sentam na cadeira, eles precisam confiar em mim.  Esse trecho de Jayber Crow , de Wendell Berry, me levou a pensar em Deus. Este mundo é a barbearia dele, e nós, os seus clientes. Às vezes, apenas para termos um gostinho da eternidade, nos é concedido olhar por espelhos. Às vezes, eu disse. E ainda assim, espelhos paulinos — opacos —, até que venha o que é perfeito (1Co 13.12). É somente pelo espelho da fé que vemos o reflexo do que seremos.  Sente-se na cadeira e feche os olhos. Confie! O Barbeiro tem mãos hábeis. Não há o mínimo risco de caminhos de rato.   

A gente não quer só comida

Sinal fechado. As mãos procuram o vil metal para dar ao pedinte e não acham. Na carteira, apenas papéis e nenhum deles é cédula. Então pego o celular e esboço a inacreditável pergunta. Não, Leonardo. Não é possível que você vai perguntar isso. Como terá smartphone um sujeito que não tem o que comer? É quando o sinal abre. O carro de trás não quer conversa. Preciso arrancar. Eis a verdade: o Pix acabou com a caridade nos sinais.  Continuo me perguntando se o mendigo terá Pix, e me lembro de um episódio. No sinal havia um jovem — descalço, pé preto de asfalto, cabelo descolorido, um tanto macilento e de olhos tristes segurando um cartaz com os dizeres “PRESCISO DE COMIDA” (sim, pois cartazes ortograficamente corretos aumentam em 99% o risco da não esmola). Como se o sinal abrisse e diante da indiferença dos motoristas, vai para a calçada e então faz o imponderável: começa a dançar. Eu poderia dizer que ele estava sambando involuntariamente devido ao chão quente, mas não: havia um movimen

Os aleijados entrarão primeiro

Não. Este não é um comentário ao conto homônimo da genial Flannery O'Connor. Mas poderia ser. (Se puderem, leiam o conto. Sério.)  Na minha infanto-adolescência tinha um rapaz no bairro cujo nome de batismo era Abinadabe — ninguém carrega um nome desses se não tiver mãe crente —, mas que conhecíamos simplesmente por “Dabe”. Era um moço peculiar e o bicho na bola. Com ela dominada, era difícil arrancar-lhe. Ele driblava. Ele corria. Ele até chutava. Ah, como chutava! O que muitos talvez não saibam — exceto sua mãe — é que ele, na verdade, deveria se chamar Mefibosete. Sim, era aleijado. Não um aleijado de meia tigela: aleijado mesmo . No entanto era capaz das plasticidades mais inverossímeis.  Esses dias reparei, como nunca havia reparado, nas pernas, ou melhor, na perna do Garrincha. Deus! Tecnicamente, um aleijado! O futebol de hoje, obcecado pelo físico, pelo ceerrecetismo (ou ceticismo, tanto faz), jamais o admitiria. Imagino-o em seu começo, no descobrimento do Brasil. Alguém

A última visão

Hospital.  A tevê da sala de espera exibia a cobertura do velório do Rei recém falecido. Acompanhado de Lucas e Pedro, contemplo, incrédulo, a imagem. Ele se foi. O inventor do Brasil, o homem dos mil duzentos e tantos gols, três Copas, etc., se foi. Devia ter mais gente aí. O país devia parar. Se fosse no México , talvez colocassem um aviso: “Hoje não vamos abrir, pois vamos ao enterro do Pelé”.  Súbito, um carro para na entrada da Emergência. O filho desce desesperado, implorando por uma maca, pois seu pai jazia no banco de trás. Olho e vejo uma perna derramada para fora da porta veículo. Os rapazes do hospital tratam de providenciar o aparato, mas não ficam para ajudar o homem a colocar seu velho moribundo nele. O motorista do carro, impassível estava, impassível ficou. Então me disponho a ajudar. “Quer ajuda para colocá-lo na maca, amigo?” “Por favor!” Abordo o senhorzinho pelos braços. Estava desfalecido. De sua boca descia uma baba rala e discreta. Seus olhos, virados, contemplav