Os aleijados entrarão primeiro

Não. Este não é um comentário ao conto homônimo da genial Flannery O'Connor. Mas poderia ser. (Se puderem, leiam o conto. Sério.) 

Na minha infanto-adolescência tinha um rapaz no bairro cujo nome de batismo era Abinadabe — ninguém carrega um nome desses se não tiver mãe crente —, mas que conhecíamos simplesmente por “Dabe”. Era um moço peculiar e o bicho na bola. Com ela dominada, era difícil arrancar-lhe. Ele driblava. Ele corria. Ele até chutava. Ah, como chutava! O que muitos talvez não saibam — exceto sua mãe — é que ele, na verdade, deveria se chamar Mefibosete. Sim, era aleijado. Não um aleijado de meia tigela: aleijado mesmo. No entanto era capaz das plasticidades mais inverossímeis. 

Esses dias reparei, como nunca havia reparado, nas pernas, ou melhor, na perna do Garrincha. Deus! Tecnicamente, um aleijado! O futebol de hoje, obcecado pelo físico, pelo ceerrecetismo (ou ceticismo, tanto faz), jamais o admitiria. Imagino-o em seu começo, no descobrimento do Brasil. Alguém cochicha para o seu treinador: “Mas este rapaz é aleijado!”, ao que este responde: “Tá na Bíblia: os aleijados entrarão primeiro”.

Há fome de bola na várzea. Os fariseus, que ficarão de fora do banquete, não sabem o que é isso. 


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