Dança com os deuses

Outro dia eu fiz um crossover entre C. S. Lewis e Raul Seixas no Instagram, então Arnaldo Antunes vai soar fichinha pra vocês. Bem, vamos lá.

Se por um lado “Carpinteiro do universo”, do roqueiro baiano, me leva a refletir na natureza egoísta do nosso (suposto) altruísmo, “Alegria”, do ex-titã, me faz pensar na natureza egoísta do nosso sofrimento. Diz a letra:

Eu vou te dar alegria
Eu vou parar de chorar
Eu vou raiar um novo dia
Eu vou sair do fundo do mar
Eu vou sair da beira do abismo
E dançar, e dançar, e dançar
A tristeza é uma forma de egoísmo
Eu vou te dar, eu vou te dar, eu vou...

É precisamente esse o problema de Orual, personagem de C. S. Lewis em Até que tenhamos rostos. Em dado momento da narrativa, ela empreende uma longa jornada até o monte onde sua irmã Psique, por quem nutria um amor maternal mas idólatra, havia sido levada para o sacrifício. Quando ela e Bardia, o fiel soldado, chegam em um determinado ponto, dão com uma paisagem tão exuberante que deixa Orual atônita. É quando sua “luta” tem início. Algo parecido com uma voz, mas “sem palavras”, como no Salmo 19, sugere ao coração de Orual que dance. Orual, que viera, como ela mesma diz, em uma missão triste”, teve que ficar repetindo para si mesma, como uma lição, as infinitas razões pelas quais seu coração não podia dançar (era feia, maltratada pelo pai, malquista pela outra irmã, Redival, etc.).  

A visão do vasto mundo colocou ideias malucas em minha cabeça, como se eu pudesse ficar vagando, vagando para sempre, vendo coisas estranhas e belas, umas após outras, até o fim do mundo. O frescor e a umidade que me envolviam (eu não havia visto outra coisa senão a natureza seca e murcha por muitos meses antes da minha doença) me fizeram sentir que eu havia julgado mal o mundo. Ele parecia gentil, sorridente, como se o seu coração também dançasse. Eu não conseguia acreditar muito nem mesmo na minha feiura. Quem consegue sentir-se feia quando o coração tem prazer? É como se, em algum lugar dentro de mim, dentro de um rosto repugnante e de membros ossudos, eu pudesse ser suave, fresca, graciosa e desejável.

Diferente do eu lírico de Arnaldo, que se propõe a “dançar, e dançar, e dançar” ao perceber que sua tristeza é uma forma de egoísmo, Orual recusa o convite da Criação. Note que ela ficou por um triz de aceitá-lo, mas acaba decidindo por sufocar a “voz” dos céus (cf. Romanos 1.20-21) e açular a própria desgraça. Eu não deveria ir sorridente ao enterro de Psique. Se eu fosse, como poderia voltar a crer que eu a amara? A razão exigia isso”, revela. Mais ou menos como aquela viúva da crônica de Nelson Rodrigues que recusou um lenço no velório do marido porque a grande dor não se assoa 

No fim, Orual encontra a mais forte razão para desconfiar daquele sentimento tolo e feliz: 

Os deuses nunca nos enviam um convite ao prazer tão rápida ou intensamente como quando nos estão preparando para uma nova agonia. Nós somos suas bolhas; eles nos enchem bastante antes de nos estourar.

De fato, logo adiante as suas suspeitas se confirmam quando eles chegam ao último cume antes da Montanha real (o Calvário?), onde Psique teria sido sacrificada. Era um vale negro e maldito, cheio de lodo e pântanos escuros. A luta de Orual contra a Alegria chegara ao fim. Aqui os deuses pararam de tentar me alegrar. Não havia nada por que até mesmo o mais feliz dos corações pudesse dançar”, arremata, talvez com um risinho de negra satisfação em seu rosto desfigurado.

Provérbios 15.13 diz que “o coração alegre aformoseia o rosto”. Eis a minha explicação para a feiura de Orual. Afinal, como ela vai descobrir mais tarde, os deuses não falam conosco abertamente, nem nos dão respostas, até que as palavras que por muito tempo jazem no centro de nossa alma sejam arrancadas de nós. Pois como eles podem nos encontrar face a face” – ou topar uma dança de rostinho colado conosco, eu diria – até que tenhamos rostos?”.

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