A última visão

Hospital. 

A tevê da sala de espera exibia a cobertura do velório do Rei recém falecido. Acompanhado de Lucas e Pedro, contemplo, incrédulo, a imagem. Ele se foi. O inventor do Brasil, o homem dos mil duzentos e tantos gols, três Copas, etc., se foi. Devia ter mais gente aí. O país devia parar. Se fosse no México, talvez colocassem um aviso: “Hoje não vamos abrir, pois vamos ao enterro do Pelé”. 

Súbito, um carro para na entrada da Emergência. O filho desce desesperado, implorando por uma maca, pois seu pai jazia no banco de trás. Olho e vejo uma perna derramada para fora da porta veículo. Os rapazes do hospital tratam de providenciar o aparato, mas não ficam para ajudar o homem a colocar seu velho moribundo nele. O motorista do carro, impassível estava, impassível ficou. Então me disponho a ajudar.

“Quer ajuda para colocá-lo na maca, amigo?”

“Por favor!”

Abordo o senhorzinho pelos braços. Estava desfalecido. De sua boca descia uma baba rala e discreta. Seus olhos, virados, contemplavam sabe-se Deus o quê. Pusemo-lo na maca. O enfermeiro vem e o empurra para dentro da Sala Vermelha. 

Sento-me de volta. Os meninos parecem assustados. O painel, então, chama pelo nome de Pedro. Enfim a vez dele. Entramos no consultório. O médico examina o seu pé, tira uma foto e manda para um colega. Era necessário uma segunda opinião. Os pontos não pareciam maduros o bastante para serem retirados hoje. Voltaria depois para dar o veredito. Tudo bem, doutor.

Como se ele demorasse além do razoável, saio à sua procura. No corredor, dou com o filho do senhorzinho. Pergunto como está o seu pai. “Está na Sala Vermelha”, responde, com voz embargada e olhos marejados. Era um paciente oncológico. Tivera alta um dia antes, e hoje de manhã, em casa, ao levantar para ir ao banheiro, caíra para trás, com a cabeça no chão. Lamento. Cogito arrumar-lhe um lenço, mas lembro de Nelson Rodrigues: a grande dor não se assoa. Então digo apenas que vou orar. Ele agradece.

Bato nos consultórios e não vejo médicos senão uma médica, que me informa do paradeiro do doutor que atendera Pedro. Fora chamado para reanimar um paciente na Sala Vermelha. Então entendi. A demora não era sem razão. Quase uma hora depois, ele volta. Havia certa frustração em seu olhar, mas ele tentava disfarçar dizendo alguma graça para o menino com os dedos ponteados. Desconfiado, pergunto do paciente da Sala Vermelha. Ele meneia a cabeça. “Não conseguiu, doutor?”. “Não”, responde discretamente, decerto para não assustar as crianças. Mas era tarde demais. Ao menos uma delas já havia entendido tudo. Ao sair, no corredor, já não encontro mais o homem, senão sua mãe, que conversava com alguém e parecia não saber de nada ainda. 

Mais tarde, comento o assunto no carro, quando Lucas faz a pergunta fatal: “Qual terá sido a última visão dele?”

Jamais saberemos, filho. Só Deus. 

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