A gente não quer só comida

Sinal fechado. As mãos procuram o vil metal para dar ao pedinte e não acham. Na carteira, apenas papéis e nenhum deles é cédula. Então pego o celular e esboço a inacreditável pergunta. Não, Leonardo. Não é possível que você vai perguntar isso. Como terá smartphone um sujeito que não tem o que comer? É quando o sinal abre. O carro de trás não quer conversa. Preciso arrancar. Eis a verdade: o Pix acabou com a caridade nos sinais. 

Continuo me perguntando se o mendigo terá Pix, e me lembro de um episódio. No sinal havia um jovem — descalço, pé preto de asfalto, cabelo descolorido, um tanto macilento e de olhos tristes segurando um cartaz com os dizeres “PRESCISO DE COMIDA” (sim, pois cartazes ortograficamente corretos aumentam em 99% o risco da não esmola).

Como se o sinal abrisse e diante da indiferença dos motoristas, vai para a calçada e então faz o imponderável: começa a dançar. Eu poderia dizer que ele estava sambando involuntariamente devido ao chão quente, mas não: havia um movimento de mãos, de braços e antebraços. Opa, ele parece “cravar” alguma coisa. A coreografia não me parece estranha. Era isso mesmo: dançava “Ai, se eu te pego”. Dali a pouco ele voltaria com os olhos tristes e o cartaz precário, então um motorista começa a questionar se até a fome no Brasil é pose. Outro, mais compassivo, lembra-se imediatamente de uma crônica de Nelson Rodrigues em que um homem, que estava desmaiando de fome, vendo-se acudido por um prato fundo de comida diante de si, pergunta ao seu benfeitor: “Tem uma pimentinha?”.

Corretíssimo. Afinal, a gente não quer só comida.

Comentários

  1. Passei aqui para apreciar novamente a sua crônica e dizer que ela ficou nota 10!

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