Rito de passagem

"...e andando pelo caminho..." (Deuteronômio 6.7)

Saindo com Lucas da casa dos meus pais, numa visita relâmpago que lhes fizemos, cedi aos seus insistentes apelos para vir no banco da frente (ele tem 8 anos). Quando se está a sós com o seu primogênito, é bom aproveitar as oportunidades. 

- Pai, coloca uma musiquinha.

Ele já estava todo pimpão por viajar no carona, mas queria mais. Queria uma "musiquinha". Quando no banco de trás, ele também pede "uma musiquinha". Mas agora a condição é outra. Ele está do meu lado, e este é um importante rito de passagem. Pede com a autoridade de quem passou de fase. Às ordens, chefe.

Enquanto a música rolava, me peguei pensando nos meus pais. Deus, como estão envelhecendo! Até ontem eles apertavam a minha mão para subirmos no ônibus. Foi ontem que minha mãe, inconformada, ouviu do cobrador que eu tinha de pagar a passagem. Lembro de ter ficado feliz. Vamos lá, mãe. Pague logo esse negócio. É o meu momento! Ela pagou. A contragosto, mas pagou. Um importante e literal rito de passagem. Então olhei para o lado e vi um galalau, e isso me fez pensar que logo, logo será a minha vez. O tempo é cruel com todo mundo. Mas também pode ser bom.

- Espera aí, Lucas. Deixa eu colocar uma música aqui. Olha só: quero que você preste bastante atenção à letra, tá?

- Tá bom, papai.

Então pus "O Senhor do tempo", de Stenio Március. 

Mestre, me veja menino
Deixa-me correr com teus pequeninos
Mestre, de rosto amigável, de sorriso largo, de sereno olhar
Eu fui a ti criança e me recebeste de braços abertos
Que estranha distância agora
Senhor, lembra do menino que eu fui outrora

Mestre, lembro que eu buscava
E me derramava, choro adolescente
Lembro daquele caderno onde eu anotava minhas orações
Jovem busquei a Ti, o refúgio certo para um moço aflito
Que estranha distância agora
Senhor, lembra do rapaz que eu fui outrora

Mestre, estou bem mais velho
E o amor que eu tinha, onde foi parar?
Mestre, fala a esse homem, que se emocione, vá recomeçar
Faz-me correr e assim retornar ligeiro ao primeiro amor
Deixa-me ver novamente o meu nome
Escrito nas santas mãos do Senhor do Tempo

Mal terminava a primeira estrofe e o menino estava com as bochechas tremendo e os olhos marejados. Parecia já entender qual seria o movimento da música. Na segunda estrofe, as lágrimas já lhe desciam com desenvoltura; a impressão se confirmara, e agora resta saber o que será do cantor velho na última estrofe. Ela chega, e agora o choro já era copioso e acompanhado de soluços.

Chegávamos em casa. Antes de manobrar, e também aos prantos, perguntei o que ele havia entendido da música e por que ela o havia emocionado tanto.

- Quando criança ele corria para Jesus e este o abraçava. Agora, com o passar do tempo e mais velho, se afastou dele. Não quero me afastar de Jesus, papai! - e desatou a chorar. 

Então lhe falei da necessidade da oração, da comunhão da igreja, da leitura da Palavra e, principalmente, do amor de Deus para conosco, que guarda nossos pés de resvalarem. E ali mesmo pedi a Deus que, nos momentos de crise, ele permita que meu filho veja novamente seu nome escrito nas santas mãos do Senhor do tempo.

No dia seguinte, recebo a confissão de que a música o deixara triste porque na parte que diz "estou bem mais velho" ele pensou em mim idoso. Essas crianças gostam de nos pegar desprevenidos. Memento mori. Voltei aos meus pais. É a vez deles. Venho logo atrás na fila. Ela anda. E rápido. Pra todo mundo. Pensando bem, não é tão ruim assim lembrar que somos mortais. Não se considerarmos quais mãos nos seguram.

A qualquer momento o nosso Piloto poderá nos promover para o banco da frente. Então pediremos uma musiquinha. Ele atenderá com prazer. A mais linda melodia que jamais ouvimos.

Soli Deo Gloria!

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